por Carolina Ribeiro, Edison Lima e Gustavo Gindre
Impressiona a quantidade de informações equivocadas que circulam pela mídia em relação à implantação da TV Digital no Brasil. Assusta também a quase inexistência de informações sobre o que foi desenvolvido no país. Fala-se bastante de uma briga “do quem dá mais” entre europeus e japoneses. Fala-se, geralmente em aspas atribuídas ao ministro das comunicações, que o Brasil tem muita pressa para a definição do modelo, pois se tudo não for resolvido agora perderemos uma oportunidade histórica. Qual? A de ver a Copa do Mundo em TV Digital ? Claro.
A primeira grande questão que merece esclarecimento é o argumento da pressa. O Brasil tem algumas opções para implementar um sistema complexo como a TV Digital: ou constrói algumas coisas e compra outras, ou compra um elefante e tenta adaptá-lo para que ele trabalhe como um cavalo. A proposta do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), que reuniu 80 grupos de pesquisa e recebeu um investimento de R$ 50 milhões do governo (muito pouco dinheiro se comparado à grande quantidade e qualidade dos resultados obtidos), era justamente a primeira. Construir parte do sistema e pegar algumas coisas prontas. A proposta que vem sendo defendida pelo Ministro das Comunicações é adotar o padrão japonês (ISDB) e talvez fazer adaptações para que ele funcione no Brasil.
Por que ninguém explica nada direito e não assume que o melhor padrão é o brasileiro?
Entre as tecnologias desenvolvidas por aqui, uma delas é justamente a modulação, que equivale ao que a mídia chama de “padrão”. O japonês (ISDB) e o europeu (DVB) já são bem conhecidos de nome, mas pouco explicados em relação às diferenças entre eles. Em 2000, o sistema japonês permitia a transmissão de sinais independentes para a TV e para receptores móveis (como o celular), enquanto o europeu era mais limitado. Isso levou a Associação Brasileira de Rádios e TVs (Abert) a usar o argumento da "recepção móvel" como mote para a defesa do ISDB.
A partir de 2004, com a introdução do DVB-H, essa diferença deixou de existir. Mas a retórica continuou, e agora embolaram a discussão, com as emissoras defendendo o ISDB porque isso manteria o canal na mão deles, e as empresas de telefonia defendendo o DVB porque isso daria a abertura para elas participarem desse mercado. Na verdade, ambos os argumentos são furados. Tanto o DVB quanto o ISDB permitem a transmissão de sinais para celulares e, se as teles vão ou não participar desse mercado, é uma coisa que depende da regulamentação, não da tecnologia.
Um ponto em que tanto o DVB quanto o ISDB deixam a desejar é que, nos testes realizados em São Paulo no ano 2000, nenhum dos dois conseguiu ser recebido em 100% dos pontos de teste – e eram pontos localizados em bairros próximos ao centro. Foi isso que levou o Brasil a pesquisar novas alternativas, com os trabalhos do Mackenzie (SP), INATEL (MG) e PUC (RS). Os dois primeiros trabalham com melhorias baseadas no sistemas existentes, enquanto que o último parte de uma abordagem radical – usa um equalizador baseado em inteligência artificial, coisa que não existe em nenhum dos sistemas atuais (ATSC, DVB, ISDB). Isso dá mais robustez, ou seja, permite levar mais informação, tanto para programas em alta definição quanto para ser recebido em veículos a 120 km/h .
A obsessão da Globo e do ministro Hélio Costa pelo padrão japonês é incompreensível. Se a questão é um sistema que permite levar alta definição para a TV e um programa para celulares ao mesmo tempo, com a maior qualidade possível, por que então não defendem o Sorcer, modulação desenvolvida pela PUC/RS, que é melhor, atende às demandas dela e é nacional, assim como o conteúdo global e a bandeira que eles tanto levantam na mídia? Fica claro que há muito mais por trás dessa preferência do que a lógica acima exposta.
Para o elefante virar cavalo
Além do Sorcer, outros componentes inovadores desenvolvidos pelos pesquisadores brasileiros devem sofrer com a adoção de um padrão estrangeiro goela abaixo. As pesquisas que desenvolveram o FlexTV (UFPB), um middleware brasileiro, tomaram como base o MHP (o middleware do padrão europeu – DVB), mas evoluíram consideravelmente, sendo elogiados inclusive por pesquisadores europeus. O middleware japonês é bem mais limitado.
A nação tupiniquim desenvolveu ainda o Maestro (PUC Rio), um mecanismo de sincronização de mídias para a reprodução de programas multimídia interativos, que não existe em lugar algum no mundo. Desenvolveu aplicativos como o TVgrama (UnB), que é um e-mail que não precisa de canal de retorno, importantíssimo para a imensa parcela da população que não tem linha telefônica. Desenvolveu aplicativos como o museu virtual (UFPR), que apresenta imagens em 3-D, que podem ser manipuladas pelo usuário. É um aplicativo muito útil para finalidades educativas, pra recriar ambientes em aulas de geografia, história, biologia. Há também aplicativos nas áreas de saúde (UFSC), governo eletrônico (UFC, BRISA), segurança da informação (Genius, CESAR, FITEC) e muitos outros.
Uma outra questão importante que diz respeito à tecnologia é como ela interfere no modelo de serviços. O modelo de serviços é a definição de como funcionará a nova televisão brasileira. Se ela trará novos canais, se oferecerá mobilidade, como será a interatividade, se haverá serviços de governo eletrônico e educação à distância, se terá uma alta definição que só será possível ver com televisores de 10 mil reais ou se trará uma programação com qualidade de imagem de DVD, mas acessível a todo mundo. Essas questões não dependem tanto da tecnologia, mas sim da forma como ela é combinada. Logo, é uma bobagem dizer que só japoneses poderão oferecer alta definição. Ou que só europeus oferecerão novos canais. A tecnologia, tanto a desenvolvida lá fora, quanto a desenvolvida aqui, no que toca a essas questões, pode fazer qualquer coisa. É verdade que algumas tecnologias são mais adequadas que outras para as finalidades desejadas. Não dá para rodar os aplicativos desenvolvidos no Brasil usando o middleware japonês, por exemplo. Mas há outro detalhe fundamental.
Para que possamos modelar a tecnologia às demandas da sociedade, é preciso ter pleno acesso a ela. No caso do SBTVD, toda a parte de software (e até um dos itens de hardware) foi feito em software livre. No caso dos outros sistemas, muitos componentes estão patenteados, até com uma patente da Microsoft. Isso mostra limitações para adequarmos ao que queremos – o que reforça a necessidade de termos mais tempo para definir modelo de serviços antes –, para o desenvolvimento futuro de acordo com as demandas que surgirem e ainda nos impõe o pagamento de royalties altíssimos, o que a longo prazo é um rombo no orçamento da União.
A mídia e o governo deveriam estar atentos a essas questões para esclarecer à população do que realmente se trata a definição, mas também para perceber que a pressa não é inimiga somente da perfeição, mas também da democracia, do bom-senso, do desenvolvimento nacional e do interesse público.
Carolina Ribeiro é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes. Gustavo Gindre é jornalista, mestre em Comunicação, coordenador-geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs) e integrante do Coletivo Intervozes. Edison Lima é diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Pesquisa, Ciência e Tecnologia-SP (Sintpq).
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